Fonte: Exame.com
A mágica de Steve Jobs foi transformar egomania, obsessão e inquietude em trunfos no mundo dos negócios.
Nova York - Das muitas histórias conhecidas sobre Steve Jobs, sem contar as que virão à tona na publicação de sua biografia autorizada, uma das mais emblemáticas aconteceu no ano de 1981, quando a Apple era uma startup.
A equipe de engenheiros trabalhava na concepção do Macintosh, o computador que seria lançado três anos depois e mudaria para sempre o mundo da tecnologia. Numa reunião em que foi apresentado o cérebro do Mac, a placa-mãe onde são espetados os componentes que fazem a máquina funcionar, Jobs fez a seguinte crítica ao trabalho dos engenheiros:
“Essa parte é realmente bonita. Mas olhe os chips de memória. Isso é feio. As linhas estão muito perto umas das outras”.
Os responsáveis pelo design ficaram atônitos. Um novato, George Crow, interrompeu Jobs:
“Mas quem se preocupa com a aparência de uma placa-mãe? O importante é que ela funcione. Ninguém vai ver”.
“Eu vou ver”, respondeu Jobs. “Quero que ela seja o mais bela possível, mesmo que esteja dentro de uma caixa. Um grande carpinteiro não vai usar madeira vagabunda na parte de trás de um armário, mesmo que ninguém vá vê-la.”
Fim de conversa. Os engenheiros voltaram ao trabalho para tentar resolver o problema de acordo com as diretrizes do chefe.
Essa discussão mostra por que Steve Jobs se tornou uma figura inspiradora para seus fãs — os consumidores da Apple — e para aqueles que admiram suas conquistas como empreendedor e executivo.
Nos 30 anos que separam esse curto diálogo da morte de Jobs, no dia 5 de outubro, ele caiu, levantou-se, transformou indústrias e levou a Apple à condição de empresa mais valiosa do mundo.
Mas os traços que transparecem na conversa sobre a placa-mãe do Macintosh original estariam presentes em todos os momentos de sua incrível trajetória: o perfeccionismo, a obsessão pela estética e seu famoso campo de distorção da realidade: na presença de Jobs, seus subordinados eram frequentemente levados a fazer algo que parecia não ter sentido nenhum. (Muitas vezes não tinha mesmo. O desenho que ele exigiu para a placa não funcionava, e a proposta original é que acabou valendo.)
Esse episódio também ilustra um lado de Steve Jobs que parece esquecido em meio à consternação com sua morte: ele fazia exatamente o contrário do que se espera de um bom executivo. Contrariava toda e qualquer regra dos manuais de gestão. Ignorava os movimentos dos concorrentes.
Não se importava com o mercado de ações. Apesar da admiração que ele sempre despertou no mundo dos negócios — e que só deve aumentar, pois Jobs se tornou de fato um mito —, apesar da inspiração representada por sua volta redentora à Apple, apesar dos manuais de autoajuda baseados em sua vida, fica claro ao conhecer a trajetória de Jobs que “pensar diferente” é um luxo reservado para poucos.
Em primeiro lugar, claro, é preciso fazer por merecer o direito de ser diferente. Sua obstinação era lendária. Quando era adolescente, ainda no ensino médio, Jobs ligou para a casa de Bill Hewlett, um dos cofundadores da Hewlett-Packard.
“Naquela época ainda não existiam números fora da lista telefônica”, disse ele sobre o episódio em sua última aparição pública, diante do conselho municipal de Cupertino, onde fica a sede da Apple.
"Ele atendeu o telefone, e eu pedi peças para montar um contador de frequência. Ele me deu as peças, mas algo ainda mais importante: um estágio na divisão que fazia os contadores de frequência.”
Foi essa mesma determinação que levou Jobs a criar a Apple, anos depois, com a intenção de colocar os computadores das grandes empresas e das universidades também na casa das pessoas comuns. Os PCs, como ele definiu em uma de suas frases mais famosas, eram “bicicletas para a mente” e mudariam o mundo.
Mas eles não existiam como os conhecemos hoje, e isso foi fundamental para que Jobs pudesse imprimir sua visão — e suas idiossincrasias — nos produtos e em sua empresa. Como trabalhava na própria companhia, apostando num mercado que nem sequer existia, ele pôde desde o primeiro momento exercer outro traço pelo qual é conhecido: a tirania.
“Ele daria um ótimo rei da França”, disse um funcionário da empresa, segundo a reportagem de capa da revista Time de 1982 que elegeu o computador o “homem do ano” e incluiu um perfil não exatamente lisonjeiro de Jobs.
Esse episódio é apontado como um dos motivos pelos quais a Apple tenha operado no mais absoluto segredo desde os primeiros tempos. Se Jobs se comportava como um déspota, ninguém saberia. Desde meados dos anos 80, suas entrevistas se tornaram eventos raríssimos.
Ele mantinha contato com um punhado de jornalistas de grandes publicações, mas sempre off the record. As raras declarações que podiam ser reproduzidas costumavam acontecer depois de algum lançamento de produto — e, em geral, resumiam-se a elogios. Ninguém além dele próprio podia se manifestar em nome da companhia.
Mas isso não impediu que escapassem relatos do comportamento de Jobs no emprego, muito pelo contrário. Uma das melhores coleções está na internet e foi compilada por Andy Hertzfeld, um dos integrantes da equipe original do Macintosh e hoje funcionário do Google.
Eis um exemplo do que Hertzfeld ouviu de um chefe, ainda nos anos 80: “Ele (Jobs) é engraçado com relação a ideias. Se você apresentar uma ideia nova, em geral ele vai dizer que ela é uma estupidez. Mas, se gostar dela, exatamente uma semana depois ele vai voltar e apresentá-la para você como se ela tivesse saído da cabeça dele”.
Apesar das histórias de crueldade com os subordinados, poucos são os que deixam a Apple. Desses, um grupo ainda menor critica a companhia.
“Trabalhar com Jobs era um grande privilégio”, diz Gene Munster, do banco Piper Jaffray, um dos mais respeitados analistas de tecnologia do mercado americano. “Quem passou pela experiência, por mais difícil que ela tenha sido, sabe que fez parte de algo especial.”
O poder de persuasão de Jobs também era incomparável. Mas isso decorria mais de sua visão do que de seu charme e carisma, por mais famosos que eles fossem. Em 2001, quando o primeiro iPod foi lançado, o gênio do MP3 já tinha saído da garrafa, e as gravadoras vislumbravam um futuro sombrio.
Mas, naquela época, MP3 era sinônimo de música no computador. Os poucos players que existiam eram de má qualidade e tinham pouco espaço de armazenamento.
Muito antes que seus concorrentes enxergassem o tamanho da ruptura que se desenhava, a Apple lançou o iPod, que tinha um sistema de controle simplificado e guardava 1 000 arquivos, ao contrário das centenas de concorrentes.
“Até agora, ninguém encontrou a receita para a música digital”, disse Jobs no evento em que mostrou o iPod pela primeira vez. “Acho que nós a encontramos.” E como. Foi graças ao sucesso do iPod que Jobs conseguiu dobrar as gravadoras a vender arquivos por intermédio da Apple pelo preço de 99 centavos de dólar.
A loja iTunes, lançada em 2003, hoje conta com mais de 200 milhões de faixas e é, de longe, a maior vendedora de músicas do mundo. Foi apenas em 2007 que a empresa tirou a palavra “computer” do nome — mas a visão já estava na cabeça de Jobs havia vários anos, e foi graças a ela que as gravadoras puderam ter algum sucesso na revolução digital.
Um ego maior que a própria vida também foi um ingrediente fundamental na trajetória de Jobs. “Muitas vezes as pessoas não sabem o que querem até que mostremos a elas”, disse ele em certa ocasião.
Diante do sucesso estrondoso que a Apple alcançou, especialmente na última década, é difícil discordar. Mas talvez a idade, ou a percepção de que os sistemas fechados têm pouca chance nos tempos da internet, tenha atenuado em Jobs e na Apple o ímpeto de fazer tudo por conta própria.
O primeiro iPod funcionava apenas no Mac; foi com o lançamento da versão compatível com o Windows que o produto decolou. Com o iPhone, houve um fenômeno semelhante.
O aparelho foi unanimidade desde o instante em que apareceu pela primeira vez, mas o sucesso se consolidou quando a Apple decidiu permitir que desenvolvedores de software criassem programas para ele que a plataforma se tornou o grande ativo da Apple nessa nova era da computação pessoal.
Qualquer uma dessas características, sozinha, já tornaria a vida de qualquer um numa empresa. Todas elas juntas, então, nem se fala. É por isso que Jobs só podia ser Jobs nas empresas que ele criou e moldou à sua imagem.
Outro elemento fundamental é o faro de que os mercados em que ele atuava essencialmente não existiam ou pelo menos foram transformados profundamente por suas mãos.
Jobs gostava de se considerar um artista, e acreditava que seus funcionários devessem pensar da mesma maneira em relação a si próprios.
Só artistas podem ser realmente independentes, seja em relação à opinião dos outros, seja em relação ao valor comercial de suas criações. Como artista ou empresário, Jobs será lembrado por anos e anos.
Não há chance de que seu nome seja esquecido: a forma que moldou o gabinete plástico dos primeiros Macintosh continha a assinatura de todos os que participaram do projeto.
Os nomes estão gravados na parte interna dos computadores. Em letras minúsculas e no meio da lista, numa rara demonstração de espírito de equipe, está a assinatura: steven jobs.
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